Por Dora
Kramer – Publicado em “O Estado de São Paulo”
Partindo do
pressuposto de que não lhe falha a memória e de que o Brasil não sofre epidemia
de amnésia, a presidente Dilma Rousseff incorre em ato de deliberada
apropriação indébita ao atribuir ao seu governo o marco histórico no combate à
corrupção, devido ao desmonte do esquema de ilícitos em funcionamento na
Petrobrás entre 2003 e 2012.
Da
Austrália, a presidente se pronunciou dizendo que esse é um escândalo de
características especiais. Segundo ela, "o primeiro a ser
investigado". E por isso mesmo, um divisor, "capaz de mudar para
sempre as relações entre a sociedade brasileira, o Estado brasileiro e as
empresas privadas", em relação à impunidade. Avocou para si o mérito,
quando ele se deve a instituições que funcionaram com independência: Congresso,
Polícia Federal, Ministério Público e Supremo Tribuna Federal.
Em matéria
de amplitude há, de fato, ineditismo, como demonstraram as prisões dos
executivos de empreiteiras na última sexta-feira e já indicam as notícias sobre
a próxima fase da Operação Lava Jato sobre o envolvimento de algumas dezenas de
políticos. Nem de longe, porém, é possível dizer que esse seja o primeiro
escândalo a ser investigado e muito menos que seja a causa de mudança de
procedimentos.
Na
realidade, é consequência de um escândalo produzido pelo PT, o mensalão: desde
a denúncia de Roberto Jefferson, passando pela bem sucedida CPI dos Correios, o
trabalho do Ministério Público, a denúncia do procurador-geral Antonio Fernando
de Souza, o julgamento e as condenações no Supremo Tribunal Federal, até as
prisões dos réus.
Enquanto os
políticos estão quase todos cumprindo suas penas em prisão domiciliar, os
operadores do esquema nos bancos e agências de publicidade continuam na cadeia.
O principal deles, Marcos Valério ainda ficará por muito tempo em regime
fechado. Confiou na influência dos donos do poder e calou-se na CPI e na
Justiça. Quando quis fazer delação premiada era tarde.
Deu-se ali a
mudança de paradigma que serviu de exemplo e, depois de alguma resistência,
incentivou Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef a optarem pelos acordos de
delação premiada. A eles recentemente juntaram-se outros, no que em breve
talvez seja uma fila.
Com base nas
informações prestadas em exaustivos depoimentos é que a polícia está
conseguindo desmontar o que a PF já havia chamado de "organização
criminosa" montada dentro da Petrobrás. Isso ao tempo em que o governo
tratava o assunto em estado de total negação de que houvesse qualquer tipo de
irregularidade na estatal - no máximo se admitia erros administrativos, nunca
decorrentes de "má-fé", muito menos de intenções delituosas.
De onde não
se pode aceitar como verossímil a versão de que foi a presidente quem
"mandou" investigar. Inclusive porque o trabalho foi feito em
conjunto pela Polícia Federal, Ministério Público e Justiça do Paraná,
instâncias cuja autonomia é assegurada pela Constituição.
Até meados
do ano, antes de aparecerem evidências mais consistentes, o governo só fez
trabalhar intensamente para inviabilizar as comissões de inquérito no Congresso
que pretendiam investigar os negócios na Petrobrás, tentar adiar decisões do
Tribunal de Contas da União sobre a refinaria de Pasadena e por várias vezes
ministros, políticos governistas e a própria presidente insistiam na versão de
que quem lança suspeições sobre a empresa tinha como objetivo enfraquecer um
patrimônio nacional e impor prejuízos políticos à candidatura da presidente.
Houve mesmo
um momento em que Dilma pôs em dúvida a veracidade do conteúdo das delações
premiadas e acusou a oposição de usar as "supostas denúncias" para
dar "um golpe" no País.
Diante de
tanta contradição e ambiguidade, é de puro exercício de ficção transformar o
governo de agente a combatente da corrupção na Petrobrás.
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