Fernando
Gabeira – Publicado em “O Estado de
São Paulo”.
Passada uma
semana do juízo final, ainda me pergunto cadê a Dilma. Ela disse que as contas
públicas estavam sob controle e elas aparecem com imenso rombo. Como superar
essa traição da aritmética? Uma lei que altere as regras. A partir de hoje,
dois e dois são cinco, revogam-se as disposições em contrário.
Os sonhos de
hegemonia do PT invadem a matemática, como Lysenko invadiu a biologia nos anos
30 na Rússia, decretando que a genética era uma ciência burguesa. A diferença é
que lá matavam os cientistas. Aqui tenho toda a liberdade para dizer que
mentem.
Cadê você,
Dilma? Disse que o desmatamento na Amazônia estava sob controle e desaba sobre
nós o aumento de 122% no mês de outubro. Por mais cética que possa ser, você
vai acabar encontrando um elo entre o desmatamento na Amazônia e a seca no
Sudeste.
Cadê você,
Dilma? Atacou Marina porque sua colaboradora em educação era da família de
banqueiros; atacou Aécio porque indicou um homem do mercado, dos mais
talentosos, para ministro da Fazenda. E hoje você procura com uma lanterna
alguém do mercado que assuma o ministério.
Podia parar
por aqui. Mas sua declaração na Austrália sobre a prisão dos empreiteiros foi
fantástica. O Brasil vai mudar, não é mais como no passado, quando se fazia
vista grossa para a corrupção. Não se lembrou de que seu governo bombardeou a
CPI. Nem que a Petrobrás fez um inquérito vazio sobre corrupção na compra de
plataformas. A SBM holandesa confessou que gastou US$ 139 milhões em propina.
E Pasadena,
companheira?
O PT está aí
há 12 anos. Lula vez vista grossa para a corrupção? Se você quer definir uma
diferença, não se esqueça de que o homem do PT na Petrobrás foi preso. Ele é
amigo do tesoureiro do PT. A cunhada do tesoureiro do PT foi levada a depor
porque recebeu grana em seu apartamento em São Paulo.
De que
passado você fala, Dilma? Como acha que vai conseguir se desvencilhar dele? A
grana de suas campanhas foi um maná que caiu dos céus?
Um dos
traços do PT é sempre criar uma versão vitoriosa para suas trapalhadas. José
Dirceu ergueu o punho cerrado, entrando na prisão, como se fosse o herói de uma
nobre resistência. Se Dilma e Lula, por acaso, um dia forem presos, certamente,
dirão: nunca antes neste país um presidente determinou que prendessem a si
próprio.
Embora fosse
um fruto do movimento de arte moderna no Brasil, Macunaíma é um herói
pós-moderno. Ele se move com desenvoltura num universo onde as versões
predominam sobre as evidências. Nesta primeira semana do juízo final, pressinto
a possibilidade de uma volta ao realismo. É muito aflitivo ver o País nessa
situação, enquanto robôs pousam em cometas e EUA e China concordam em reduzir
as emissões de gases de efeito estufa. O realismo precisa chegar rápido para a
equação, pelo menos, de dois problemas urgentes: água e energia. Lobão é o ministro
da energia e foi citado no escândalo. Com perdão da rima, paira sobre o Lobão a
espada do petrolão. Como é que um homem desses pode enfrentar os desafios
modernos da energia, sobretudo a autoprodução por fontes renováveis?
Grandes
obras ainda são necessárias. Mas enquanto houver gente querendo abarcar o mundo
a partir das estatais, empreiteiras pautando os projetos, como foi o caso da
Petrobrás, vamos patinar. O mesmo vale para o saneamento, que pode ser feito
também por pequenas iniciativas e técnicas, adequadas ao lugar.
Os homens
das empreiteiras foram presos no dia do juízo final. Este pode ser um caminho
não apenas para mudar a política no Brasil, mas mudar também o planejamento. A
crise hídrica mostra como o mundo girou e a gente ficou no mesmo lugar. Existe
planejamento, mas baseado em regularidades que estão indo água abaixo com as
mudanças climáticas.
O dia do
juízo final não foi o último dia da vida. É preciso que isso avance rápido
porque um ano de dificuldades nos espera. Não adianta Dilma dizer que toda a
sua política foi para manter o emprego. Em outubro, tenho 30.283 razões para
desmentir sua fala de campanha: postos de trabalho perdidos no período.
Não será
derrubando a aritmética, driblando os fatos que o governo conseguirá sair do seu
labirinto. O desejo de controlar a realidade se estende ao controle da própria
oposição. O ministro da Justiça dá entrevista para dizer como a oposição se
deve comportar diante do maior escândalo da História. Se depois de saquear a
Petrobrás um governo adversário aconselhasse ao mais ingênuo dos petistas como
se comportar, ele riria na cara do interlocutor. Só não rio mais porque ando
preocupado. Essa mistura de preocupação e riso me faz sentir personagem de uma
tragicomédia.
Em 2003,
disse que o PT tinha morrido como símbolo de renovação. Me enganei. O PT morreu
muitas vezes mais. Tenho de recorrer ao Livro Tibetano dos Mortos, que
aconselha a seguir o caminho depois da morte, sem apego, em busca da
reencarnação. Em termos políticos, seria render-se à evidência de que saqueou a
Petrobrás, comprou, de novo, a base aliada e mergulhar numa profunda reflexão
autocrítica. No momento, negam tudo, mas isso o Livro Tibetano também prevê: o
apego à vida passada é muito comum. Certas almas não vão embora fácil.
A crise é um
excelente psicodrama: o ceticismo político, a engrenagem que liga governo a
empreiteiras, o desprezo pelas evidências, tudo isso vira material didático.
Dizem que
Dilma vive uma tempestade perfeita com a conjunção de tantos fatores negativos.
Navegar num tempo assim, só com o preciso conhecimento que o velho Zé do Peixe
tinha da costa de Aracaju, pedra por pedra, corrente por corrente.
No mar
revolto, sob a tempestade, os raios e trovões não obedecem aos marqueteiros.
Por que obedeceriam?
O ministro
da Justiça vê o incômodo de um terceiro turno. Não haverá terceiro turno, e,
sim, terceiro ato. E ato final de uma peça de teatro é, quase sempre, aquele em
que os personagens se revelam. Por que esses olhos tão grandes? Por que esse
nariz tão grande, as mãos tão grandes, vovozinha?
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