Por Demétrio Magnoli - Sociólogo e Doutor em Política Internacional
“Eu sustento
que uma pequena rebelião aqui e ali é uma coisa positiva, e tão necessária no
mundo político quanto são as tempestades no mundo físico”, escreveu Thomas
Jefferson a James Madison no início de 1787, referindo-se à rebelião de
agricultores de Massachusetts dirigida por Daniel Shay. Hoje, no Brasil, a
Lava-Jato veicula uma “rebelião”, e não tão pequena, da sociedade civil contra
um sistema de poder que estava no rumo de degradar nossa democracia em
oligarquia. A fotografia de André Esteves em uniforme prisional serve como
ícone temporário dessa “rebelião” — não porque um banqueiro seja,
necessariamente, um culpado, mas por evidenciar que a impunidade absoluta
deixou de ser o apanágio dos poderosos.
Oligarquia é
o governo de poucos, que se distinguem pela riqueza e/ou por laços
corporativos, militares, religiosos ou familiares. Historicamente, as
oligarquias organizaram sistemas de poder autocráticos destinados à proteção de
sua riqueza. Em tese, o advento do Estado moderno e da democracia de massas
dissolveu os sistemas oligárquicos, obrigando os poderosos a se desarmar,
submetendo-se às leis gerais aplicáveis a todos os cidadãos. Contudo, sob
certas condições, a oligarquia ressurge no interior da democracia,
desequilibrando os pratos da balança de poder na direção do dinheiro. O Brasil
de Lula e do PT marchava nessa direção, a passo acelerado.
“Os ricos
nunca ganharam tanto dinheiro como no meu governo”, exclamou Lula anos atrás,
cobrando um apoio que, de fato, nunca lhe faltou. O capitalismo de Estado, uma
ponte legal entre as esferas da política e da economia, é um ambiente perfeito
para o desenvolvimento do fenômeno de degeneração oligárquica da democracia.
Desvendada pela Lava-Jato, a nossa “república dos negócios” funciona como porta
giratória entre o alto empresariado e a fração da elite política encastelada no
governo. No meio do caminho, conectando uns e outros, situam-se os
“operadores”, que são executivos, administradores públicos, quadros partidários
ou doleiros. A nova prisão de José Dirceu, seguida pelas prisões de Marcelo
Odebrecht, Delcídio Amaral e André Esteves, atesta que a “rebelião” já avança
além da camada dos intermediários, rumo ao núcleo do sistema oligárquico.
Na sua face
crua, rústica, a “república dos negócios” propicia contratos bilionários das
estatais, principalmente a Petrobras, com o cartel das empreiteiras, que são
fontes inesgotáveis de recursos para máfias políticas e generosas propinas para
os “operadores”. Mas, no alicerce disso, como agora se sabe, encontra-se uma
sofisticada articulação financeira que abrange o BNDES, um banco estatal
irrigado por emissões de dívida do Tesouro, e os fundos de pensão, instituições
semiprivadas capazes de mobilizar vastas reservas de capital. A deriva
oligárquica do Brasil foi movida por um comando central, governamental e
partidário, que aperta os botões dessa complexa engrenagem. A “rebelião” fracassará
se, no fim, não dizimar a casa de máquinas.
Dias atrás,
na “Folha de S. Paulo”, o presidente do BNDES, Luciano Coutinho, assinou um
texto de contestação de reportagem sobre os critérios adotados pelo banco
estatal na concessão de financiamento subsidiado a uma empresa de José Carlos
Bumlai, o “amigo do peito” de Lula. Numa eclosão de cinismo, Coutinho
argumentou que a análise de crédito e risco correu por conta do Banco do Brasil
e do BTG Pactual, os agentes repassadores. O BB obedece à mesma casa de máquinas
do BNDES e também tem seu lastro último na dívida pública. Menos óbvio — e mais
esclarecedor — é o papel desempenhado pelo BTG, um banco privado de
investimento, na teia do capitalismo de Estado tupiniquim.
“O BNDES é
uma qualidade e uma conquista brasileira”, proclamou André Esteves no início de
2013, numa entrevista em que derramou elogios sobre Eike Batista e suas
empresas. Na ocasião, o banqueiro enxergou “o governo indo numa direção muito
boa”, definiu a vocação de seu banco de servir como “o óleo da engrenagem da
economia brasileira” e traçou um paralelo elucidativo. O BTG, explicou, é “um
BNDES privado e eficiente”. De fato, tal como o banco estatal, e muitas vezes
em parceria com ele, o banco de Esteves financiou negócios de Bumlai, associou-se
à Petrobras na aventura da Sete Brasil e adquiriu da mesma Petrobras, a preço
de banana, campos de petróleo na África. O banqueiro “privado” atravessou
inúmeras vezes a porta giratória do intercâmbio de favores da nossa “república
de compadres”. Nesses trajetos, acumulou fortunas e escreveu capítulos ainda
ocultos na história da santa aliança de Lula com o alto empresariado.
A “república
de quadrilhas” experimenta múltiplas falências. Sob os efeitos de um colapso
fiscal e político, o governo tornou-se incapaz de sustentar os fluxos vitais de
subsídios destinados às empresas da santa aliança. Sob o fardo de uma dívida
colossal, a Petrobras verga diante do abismo e tenta vender patrimônios na
bacia das almas. Sob os golpes judiciais da Lava-Jato, as empreiteiras do
cartel equilibram-se nos umbrais da falência enquanto o BTG sofre uma perigosa
hemorragia de capitais. O experimento lulopetista de engenharia política,
econômica e social vive seus estertores finais. Tudo indica que, na hora
decisiva, e apesar da mesquinhez da oposição parlamentar, a democracia
brasileira conseguiu evitar a estabilização do sistema oligárquico.
A lama no
Rio Doce é uma metáfora apropriada, mas não é a única. “Nos últimos anos, não
vínhamos combatendo o mosquito para vencer e, por isso, estamos perdendo”,
admitiu o ministro da Saúde, Marcelo Castro, referindo-se ao surto de
microcefalia. De fato, “nos últimos anos”, no reino encantado dos negócios
fabulosos, da Copa e das Olimpíadas, o governo tinha outras prioridades — “e,
por isso, estamos perdendo”. A nossa “rebelião” tem alvo certo. Abaixo a
oligarquia!
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